Elvira Tomazin
Éramos pelo menos vinte pessoas reunidas para discutir textos filosóficos. Rubem Alves – escritor, psicanalista e poeta, coordenava os trabalhos. Em meio às acaloradas discussões sobre a vida, um homem se levanta e sugere ao escritor que escrevesse um livro com o título: “Existe vida após o casamento?”. Rimos e, em seguida, fez-se um silêncio medonho na sala. Humor e pavor reunidos: o casamento estava sendo equiparado à morte. Considerando que a maioria dos presentes era, foi ou seria um dia casada, aquele homem, que num rompante declarou sua dúvida, quem sabe sua dor, estava acenando com a possibilidade de morte em vida para todos.
Enquanto voltava para casa, aquela pergunta martelava minha cabeça e tive medo da morte. Vida, vida... o que é a vida? O que significa sentir-se vivo nessa vida? E o que significa sentir-se morto? As perguntas faziam troça da minha capacidade de encontrar respostas.
Por entre as luzes dos carros velozes, uma imagem de terror: uma noiva e um noivo, estonteantemente jovens e elegantes, subiam as escadas do cadafalso e, no topo, o carrasco devidamente paramentado, aguardava-os para expressarem o último desejo antes da guilhotina. Cabeças prestes a rolar e o povo, em êxtase, gritava: clemência, clemência! Era tarde. Impossível unir por um fio o que estava predestinado: o amor não é eterno.
Não! Esse meu amor apaixonado que quero para sempre eterno, não podia estar condenado. Aos apaixonados, a atemporalidade. Aos descrentes, a solidão. Para mim, a certeza do meu único e sagrado amor. Não, casamento não era igual à morte.
O sono atormentado impedindo o descanso: cansaço. Os tantos casais e suas vidas maculando meus sonhos. Será que não sobra um?
Dormi contrariada. De súbito, na madrugada, o despertar de um sonho. Um circo e um casal de equilibristas dançando numa corda bamba. Roupas reluzentes nos corpos esguios e vigorosos. Sorrisos abertos denunciando alegria e encantando a plateia. Nada além de um ao outro para mantê-los em pé. Ela, com a graça e a curiosidade de uma criança travessa, num salto surpreendia seu par que, atento e firme, segurava-a nos braços. Agora era a vez de ele saltar: uma pirueta, uma volta e a busca das frágeis e corajosas mãos que nunca o deixava cair.
Os palhaços, os malabaristas e todos os bichos se retiraram. A música calou. O povo se foi e só o casal de equilibristas, ignorando o tudo, o mundo e ordem, sobrou. Aproximei-me deles.
- Hei! Vocês não vão descer daí? Todos se foram...
Delicadamente eles me olharam e interromperam um abraço. Sentaram-se e me ouviram.
- Essa é a nossa casa, ela me respondeu com altivez.
- Uma casa assim... mas parece tão difícil...
- No começo não foi fácil mesmo: ela pulava demais e quase nos derrubava, ele disse.
- Eu? Você que só queria do seu jeito, de imediato ela retrucou, olhando maliciosamente para ele.
- Pode ser, pode ser... Agora, gosto assim. Acertamos os saltos, estamos nos entrosando. Sim, e a cada dia compartilhamos novos passos. Menina, ela é uma fantástica bailarina!, vagueando seu rosto entre o meu e o dela, ele observou.
- E ele é um poeta, menina! Vive me encantando com suas palavras, com doçura ela completou, enquanto olhava carinhosamente para ele.
Estava impressionada com aquela cena. Queria saber mais e a ternura agora os envolvia e impedia novas perguntas. Gritei.
- Por favor, por favor me contem: há quanto tempo vocês moram aí?
- Setenta e um anos, disse ele orgulhoso.
- O quê? Setenta e... não, não... Como? Qual o segredo?
Vendo meu espanto, eles riram como crianças. Eles eram crianças, pensei. Talvez fosse esse o segredo.
- Não é segredo, menina. É o desejo, é querer encontrar, é conseguir reconhecer, é decidir permanecer. Em uma festa o encontrei. Aproximamo-nos e conversamos um pouco. Ouvi suas palavras e tive certeza: é ele! Demorou, demorou para ele me enxergar, ela suspirou.
- Mas você fica quieto aí, só ouvindo e rindo, digníssimo poeta equilibrista? Não vai contestar? Ela está dizendo que te fisgou como um peixe! Você permite isso?
- Não, menina, ela me conquistou e isso é bem diferente. E também tem outra coisa: o nosso segredo é a nossa idêntica vontade. E os mesmos sonhos e necessidades, em perspectivas diferentes, porém complementares. No mais, eu também queria encontrar um amor.
Estava pronta para uma outra pergunta, quando a música vibrante nos falantes preencheu todos os ares. Eles se levantaram e, como crianças que acreditam no absoluto e eterno prazer, voltaram a dançar. Nem me olharam. Fui embora. Antes de fechar as portas do circo, porém, parei por um instante e os observei mais uma vez. Queria levar aquelas cores para nunca delas me esquecer.
Abri os olhos e os reconheci. Eram meus avós – Santo e Elvira. Sim, existe vida após o casamento. O amor pode ser eterno.
Obs.: Meus avós, Santo e Elvira, permaneceram juntos por 71 anos. Nunca presenciei uma briga deles. Em 2002, ele se foi. Nesse dia, ela chorou como uma criança. Hoje, com quase cem anos, ela aguarda pacientemente o momento de revê-lo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário