Respeitando o hábito de sempre manter as mãos e os pés impecáveis, cheguei pontualmente ao salão de beleza para o meu deleite semanal. Mal iniciei os cordiais cumprimentos às presentes, fui informada que alguém estava interessada em usurpar meu sagrado horário. De imediato pensei num discurso contestador. Nem tive tempo de proferi-lo. Uma senhora adentra o recinto com tal imponência e furor, que me desarmou: "vou me encontrar com meu namorado, posso pegar o seu lugar?" Que ousadia! Fiquei paralisada, não sabia se ria ou chorava. Estava diante de uma guerreira apaixonada e qualquer argumento sobre meus legítimos direitos seria em vão. Era pegar ou largar: ou me sentava e esperava ou ia embora. Fiquei.
A manicure, constrangida com o desrespeito ao meu horário, mas visivelmente a favor da outra, iniciou uma conversa para justificar o contratempo.
- Faz quatro meses que ela está namorando. Conheceu o gatão no baile dos veteranos. Foi lá sacolejar as cadeiras com as amigas e virou mocinha. Quem te viu e quem te vê! Sabe quantos anos ela tem? Setenta!
O assunto estava ficando interessante, mas aquilo era brincadeira, pensei. Setenta anos com aqueles olhos brilhantes e aquele porte ilustre?
- Ele me ligou de repente, não estava esperando. Vou conhecer os filhos dele. Estou tremendo de medo.
Medo e amor sempre juntos, revelados nos atos, nas palavras e nas minúcias vacilantes. Shakespeare, o poeta de todas as paixões, de forma suprema assim os uniu: "um grande amor, pequenos medos faz crescer; onde reside o medo também há bem querer".
Então a manicure, desbocada como ela só, começou a incitar a menina apaixonada:
- Conta aí, já aconteceu? Se demorar muito as traças vão comer aquela lingerie sedutora que te vendi.
- Mais respeito... você sabe das minhas limitações!, ela censurou zombeteira sua inquiridora. Você, que é psicóloga, entende dessas limitações, com brio ela me confidenciou.
Eu? Meras explicações sem importância frente às ilimitações do ser humano. Ela estava transbordando alegria e queria falar. Estava me alimentando com seu contentamento e queria ouvi-la. Era meu dia de folga.
- Faz 20 anos que... sabe... eu não namoro. Fiquei viúva há 12 anos, mas 8 anos antes do meu marido morrer a gente não namorava mais. Ele não gostava de carinho e acabei me acostumando. Nem pensava mais em conhecer alguém; fui lá no baile só para dançar um pouco, fazia tanto tempo que eu não dançava...
Ah... o amor é lindo... Mas aquele amor não era benção dos céus. Ela foi ao baile para encontrá-lo. Há 20 anos pacientemente o procurava. Às vezes demoramos um pouco para encontrar o que nos falta, mas aceitando a falta, não desistimos de procurar. E na busca da satisfação do desejo, até os deuses conspiram: o corpo envelhece, mas não perde a graça; o sorriso se esconde, mas não desaparece; os olhos choram, mas não deixam de brilhar; o tempo passa, mas não nos leva. Aquela mulher nunca se acostumara com a falta de carinho.
Unhas prontas, preâmbulo da aventura de amor. Ela se levantou e me pediu um abraço. Levei um susto! Que bom: o humano ainda me surpreendia. Se deixo de me surpreender, já não posso ver a possibilidade do inusitado. Todos se tornam mais um, nunca únicos.
- Nem sei como te agradecer, foi tão bom conversar com você. Até estou me sentindo mais forte para vencer as minhas limitações. Me diz só mais uma coisa: você também acha que consigo vencer as minhas limitações?
Eu? Dizer mais o quê? Não abri a boca durante toda essa pretensa conversa na qual ela me incluíra! Tudo era obra dela. A rota já estava traçada, meus ouvidos só contiveram o anúncio de sua breve chegada. Resolvi falar, porém:
- Algum dia você duvidou que não conseguiria vencer qualquer limitação?
- Mas é lógico que não! Só estou fazendo um pouco de charminho, ela respondeu manhosa.
Na sua contagiante alegria, ela abraçou todo mundo e foi saindo. Lá fora, encostou o rosto na janela aberta e anunciou eufórica:
- Me providencia outra roupa daquelas, Maria. E vê isso logo porque eu vou precisar!
Perdi minha hora, mas ganhei o dia: nascemos sabendo dançar, mas só os deuses nunca perdem o ritmo. Mais música para todos, senhores cavalheiros!